terça-feira, 21 de março de 2023

INERRÂNCIA BÍBLICA

 INERRÂNCIA BÍBLICA

 A questão da inspiração e autoridade da Bíblia raramente preocupou os cristãos até um século atrás. Eles olhavam para as Escrituras como a fonte de sua crença. Aceitavam a autoridade da Bíblia sem defini-la em termos de estar isenta de erro. Nenhum dos principais credos católicos ou protestantes discute a noção de possíveis erros na Bíblia. Somente a partir do século 19 essa questão dominou o cenário religioso.

Um fator importante que contribuiu para isso foi o impacto negativo da crítica liberal, que, conforme mencionado anteriormente, reduziu a Bíblia a uma coleção de documentos religiosos cheios de erros e dificuldades textuais. Esse movimento crítico fez com que muitos cristãos abandonassem seu compromisso para com a infalibilidade da Bíblia. A fim de defender a posição cristã tradicional sobre a inspiração e autoridade da Bíblia contra os ataques dos críticos liberais, cristãos conservadores desenvolveram o que se tornou conhecido como "Doutrina da Inerrância Bíblica".

Definir a doutrina da inerrância bíblica não é fácil porque ela ocorre de diversas formas. Davi d Dockery, erudito conservador dos batistas do sul, identificou nove tipos, que variam desde o ditado mecânico até à inerrância funcional.1' Em consonância com a finalidade de nosso estudo, limitaremos nossos comentários aos dois pontos de vista mais comuns de inerrância, conhecidos como inerrância "absoluta" e "limitada".


Inerrância absoluta

Dockery fornece uma requintada definição de "inerrância absoluta" a partir da perspectiva de um defensor: "Descobriremos que a Bíblia em seus autógrafos originais, devidamente interpretada, é fielem tudo quanto afirma no que diz respeito a todas as áreas da vida, da fé e da prática."


 O Concílio Internacional de Inerrância Bíblica, criado para defender a merrância das Escrituras contra os ataques de críticos liberais, formulou um conceito parecido. Em 1978, cerca de 300 líderes de igrejas e pesquisadores evangélicos se reuniram em Chicago para participar de uma conferência patrocinada por essa entidade. Após três dias de deliberações, publicaram o que ficou conhecido como The Chicago Statement on Biblical Inerrancy [A Declaração de Chicago Sobre a Inerrância da Bíblia].


A declaração propõe-se a defender a posição de inerrância bíblica contra as concepções liberais da crítica da Bíblia. Os abaixoassinados procediam de uma diversidade de denominações evangélicas e incluíam eruditos de renome como James Montgomery Boice, Cari F. H. Henry, Roger Nicole.J. I. Packer, Francis Schaeffer e R. C. Sproul. A declaração explica em detalhes os artigos formados por proposições paralelas do tipo "Afirmamos tal coisa" e "Negamos tal coisa". Para o propósito deste estudo, citamos apenas as declarações mais importantes:


"Afirmamos que, em sua totalidade, a Bíblia é inerrante, estando isenta de toda falsidade, fraude ou engano. Negamos que a infalibilidade e a merrância da Bíblia estejam limitadas a assuntos espirituais, religiosos ou redentores, excluindo informação de natureza histórica e científica. [...] Tendo sido inteira e verbalmente dada por Deus, a Bíblia não possui erro ou falha em tudo quanto ensina, quer naquilo que declara a respeito dos atos de Deus na criação e dos acontecimentos da história mundial, quer na sua própria origem literária sob a direção de Deus, quer no testemunho que dá sobre a graça salvadora de Deus na vida das pessoas. [...] Negamos que Deus, ao lazer esses escritores usarem as próprias palavras que Ele escolheu, tenha anulado suas personalidades [...].


 "Afirmamos que, estritamente falando, a inspiração diz respeito apenas ao texto autográfico das Escrituras, o qual, pela providência de Deus. pode-se determinar com grande exatidào a partir de manuscritos disponíveis."


Essa definição se assemelha à teoria do ditado verbal, negado pelo estilo literário singular de cada escritor e pela existência de discrepâncias nos textos bíblicos. No entanto, muitos evangélicos consideram a aceitação dessa posição uni marco decisivo de ortodoxia. Equiparam a autoridade da Bíblia com sua inerrância, porque presumem que, se a Bíblia não se mostrar infalível em questões seculares, então não pode ser confiável em áreas religiosas mais importantes. Eles chegam ao extremo de afirmar que os cristãos não podem ser evangélicos legítimos a menos que creiam na absoluta inerrância da Bíblia. Acreditam que a negação dessa crença leva à rejeição de outras doutrinas evangélicas e ao colapso de qualquer denominação ou organização cristã. Mostraremos em breve que essas alegações não têm fundamento bíblico nem histórico.


Inerrância limitada

Simpatizantes da inerrância limitada opõem-se à ideia de condicionar a autoridade da Bíblia à sua isenção de erros. Eles restringem a exatidão da Bíblia apenas a questões de salvação e ética. Acreditam que a inspiração divina não impediu os escritores bíblicos de cometerem "erros" de natureza histórica ou científica, visto que esses não afetam a nossa salvação. Para eles, a Bíblia não é isenta de erros em tudo quanto diz, mas é infalível em tudo quanto ensina a respeito de fé e prática.


Um bom exemplo desse posicionamento é a obra de Stephen T. Davis. Em seu influente livro TJie Debate About the Bible: Inerrancy Versus Infalibility [O Debate Sobre a Bíblia: Inerrância Versus Infalibilidade], Davis escreve: "A Bíblia é inerrante se, e somente se, não faz declarações falsas ou desencaminhadoras sobre qualquer tema. A Bíblia é infalível se, e somente se, não faz declarações falsas ou desencaminhadoras sobre qualquer questão de fé e prática. Nesses sentidos, eu, pessoalmente, acho que a Bíblia é infalível, mas não inerrante."


As muitas restrições impostas à merrância com o fim de resgatar a credibilidade da teoria fazem tanto sentido para o leigo mediano quanto expressões do tipo "a quadratura do círculo". Em última análise, o que se discute não é se a Bíblia está isenta de erros, mas se ela e confiável para nossa salvação. Argumentar que a inspiração divina impediu os escritores bíblicos de cometer erros em questões de fé e prática, mas lhes permitiu cometer erros ao lidar com questões históricas e científicas, significa criar uma dicotomia absurda.


Seria o mesmo que dizer que a supervisão do Espírito Santo (inspiração) foi parcial e descontinuada, dependendo do assunto abordado. Tal ponto de vista é negado pela clara afirmação de que "Toda a Escritura é inspirada por Deus" (2Tm 3:16; itálico acrescentado). O que se discute aqui não é se a Bíblia foi inspirada no todo ou em parte, mas em que sentido o Espírito Santo influenciou os escritores bíblicos a fim de garantir a fidedignidade de suas mensagens. Abordaremos essa questão na última parte deste capítulo.


Uma breve história do debate sobre a inerrância

Antes de analisar alguns dos problemas referentes à tese da inerrância absoluta, é útil fazer um breve relato de sua história. Em seu artigo sobre "Inerrância Bíblica", Stephen L. Andrews apresenta um = 'i=' levantamento conciso do debate sobre o tema.  Ele chama a atenção para o fato de que a maioria dos historiadores faz remontar a origem do debate sobre a inerrância entre os evangélicos ao fim do século 19, quando críticos liberais e fundamentalistas se digladiaram. Os chamados teólogos de Princeton, A. A. Hodge e B. B.Warfield, foram os mais influentes na defesa da doutrina da inerrância bíblica.


 A tese da inerrância, desenvolvida pelos teólogos de Princeton, pressupõe que a Bíblia, para ser a "Palavra de Deus" no verdadeiro sentido, deve ser merrante. Em termos bem simples, o raciocínio deles é o de que, se Deus é perfeito, a Bíblia deve ser perfeita (merrante), porque é a Palavra de Deus. Essa visão absoluta de inspiração, apesar dos protestos em contrário, resulta numa concepção de inspiração "verbal", o que minimiza o fator humano. Esse ponto de vista foi combatido por James Orr e G. C. Berkouwer, ambos defensores da tese da inerrância limitada.


A Batalha de Haroid Lindsel! em Favor da Bíblia

O debate começou a esquentar novamente na década de 1960, atingindo seu ponto de ebulição em 1976 com a publicação de The Battle for lhe Bíble LA Batalha em Favor da Bíblia], de Haroid Lindsell. Em seulivro, Lindsell faz todo o possível para demonstrar o impacto negativo que a tese da inerrância limitada supostamente causaria sobre as igrejas e seminários evangélicos. Ele chega mesmo a nomear os principais estudiosos evangélicos que se afastaram da doutrina evangélica cardeal da inerrância absoluta, passando a ensinar a inerrância limitada.


As reações de ambos os lados foram intensas. O Seminário Teológico Fuller defendeu sua posição em favor da inerrância limitada publicando uma coleção de ensaios organizados por Jack Rogers, um professor da instituição. Numa reação contrária, fundou-se o Concílio Internacional Sobre Inerrância com o propósito declarado de defender a inerrância absoluta da Bíblia, conforme expressa na Declaração de Chicago Sobre a Inerrância da Bíblia, citada anteriormente.


No ano seguinte, Lindsell escreveu a segunda parte de sua obra, Tíie Bíble in the Balance [A Bíblia na Balança], na qual responde às críticas produzidas por seu livro anterior. Desde 1980, um exército de evangélicos eminentes tem aderido ao debate. Esse abrandou um pouco, mas continua a dividir profundamente os evangélicos: inerrantistas ~ absolutos versus inerrantistas limitados. Ao que parece, o que alimenta o debate e faz o povo cristão lutar entre si a esse respeito é o interesse em defender interpretações denominacionais de doutrinas-chaves. A preocupação básica parece ser a interpretação das Escrituras, em vez de sua inerrância.


Avaliação da inerrância absoluta

A teoria da inerrância bíblica absoluta baseia-se, em grande parte, mais no raciocínio dedutivo do que numa análise indutiva dos textos bíblicos. O argumento básico pode ser resumido em três proposições: (1) a Bíblia é a Palavra de Deus; (2) Deus nunca é o autor de erros; (3) portanto, a Bíblia está isenta de erros.


Lindsell expressa essa opinião claramente quando diz: "Uma vez estabelecido que as Escrituras são 'inspiradas por Deus', segue-se axiomaticamente que os livros da Bíblia estão isentos de erros, sendo confiáveis em toda e qualquer matéria."16 Em outras palavras, para os inerrantistas, como diz Everett Harnson, "a inerrância é o resultado natural da inspiração total"


Esse é um bom argumento? Será que inspiração implica merrância absoluta, ou seja, um texto livre de imprecisões ou de qualquer tipo de erros? A Bíblia testifica de sua própria inspiração, mas não de inerrância para todas as informações que transmite. Ela nunca define inspiração em termos de isenção de erros. Em vão se procurará uma passagem bíblica que ensine não haver a possibilidade de declarações imprecisas ou erradas. A razão é que seus escritores não eram apologistas nem doutores em teologia sistemática, obrigados a lidar com as concepções críticas da atualidade acerca da Bíblia.


As duas declarações clássicas sobre inspiração nos dizem que "toda a Escritura é inspirada por Deus" (2Tm 3:16), e "nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo" (2Pe 1:21). A questão é: em que sentido é a Bíblia "inspirada-soprada por Deus" e escrita pelo "impulso" do Espírito Santo?


Foi a Bíblia "inteira e verbalmente dada por Deus", como afirma a Declaração de Chicago Sobre a Inerrância da Bíblia? Deus fez os escritores bíblicos "usarem as próprias palavras que Ele escolheu"? Parece improvável. Sabemos que os escritores bíblicos não registraram passivamente o que Deus lhes sussurrou aos ouvidos, pois cada um deles usou seu próprio estilo de escrever e as fontes de que dispunha. E fato conhecido que diversos livros da Bíblia foram compilados a partir de documentos mais antigos, tais como histórias de reis, genealogias e tradições orais. A falibilidade dessas fontes se reflete claramente nas discrepâncias que encontramos na Bíblia. Alguns exemplos serão suficientes para ilustrar esse ponto.


Exemplos de discrepâncias na Bíblia

Num artigo intitulado "The Question of Inerrancy in Inspired Writings" [A Questão da inerrância em Escritos Inspirados]. Robert Olson. ex-diretor do Ellen White Estate e meu antigo professor da área de Bíblia , apresenta um impressionante catálogo de inexatidões bíblicas com que se defrontam os estudiosos. Por amor à brevidade, transcrevemos apenas as duas primeiras listas do catálogo:


"1. Incertezas históricas. Davi matou 40 mil homens a cavalo (2Sm 10:18) ou 40 mil homens a pé (ICr 19:18)? Jesus curou o cego Bartímeu ao Se aproximar da cidade de Jencó (Lc 18:35) ou quando saía dela (Mc 10:46)? Era Hobabe cunhado de Moisés  (Nm 10:29) ou sogro (Jz 4:11)? O galo cantou uma vez quando Pedro negou ao Senhor (Mt 26:34, 69-75) ou duas vezes (Mc 14:66-72)? Cama (Lc 3:36) se situa genealogicamente entre Sala e Arfaxade, ou não (Gn 11:12)?


"2. Problemas numéricos e cronológicos. Os que morreram da praga foram 24 mil, conforme Números 25:9, ou foram 23 mil, conforme l Coríntios 10:8? Possuía Salomão 40 mil estrebarias de cavalos (IRs 4:26) ou eram 4 mil (2Cr 9:25)? Tinha Joaquim dezoito (2Rs 24:8) ou oito (2Cr 36:9) anos quando começou a reinar? Acazias chegou ao trono com a idade de 22 (2Rs 8:26) ou 42 (2Cr 22:2) anos? Davi era o oitavo filho de Jessé (lSm 16:10, 11) ou o sétimo filho (lCr 2:15)? O período dos juizes durou 450 anos (At 13:20) ou cerca de 350 anos, como seria necessário para que l Reis 6:1 esteja correto?"


Os resultados do recenseamento ordenado por Davi e levado a cabo por Joabe, chefe de seu exército, apresentam discrepâncias semelhantes. De acordo com 2 Samuel 24:9,Joabe relatou ao rei que "havia em Israel oitocentos mil homens de guerra, que puxavam da espada; e em Judá eram quinhentos mil". Mas em l Crónicas 21:5, Joabe informou a Davi que "havia em Israel um milhão e cem mil homens que puxavam da espada; e em Judá eram quatrocentos e setenta mil homens que puxavam da espada". Não resta dúvida de que os dois conjuntos de números são bastante diferentes. Um deles é inexato.


Outro exemplo é o preço pago por Davi a Araúna, o jebuseu. pela propriedade na qual o rei edificou um altar e ofereceu nele sacrifícios para fazer cessar a praga que dizimava o povo. De acordo com 2 Samuel 24:24, Davi pagou 50 ciclos de prata pela eira, mas de acordo com l Crónicas 21:25, a soma paga foi de 600 ciclos de ouro. A diferença entre 50 ciclos de prata e 600 ciclos de ouro é gigantesca, podendo dificilmente ser explicada corno um erro cometido DÓI escriba.


O Espírito Santo permitiu as discrepâncias

O que parece é que os dois escritores usaram duas fontes diferentes. O Espírito Santo poderia ter contornado o problema das fontes conflitantes sussurrando os números corretos ao ouvido dos dois escritores.Tal método teria eliminado as discrepâncias e evitado os debates académicos. Mas o fato é que o Espírito Santo preferiu não sustar nem reprimir as faculdades humanas dos escritores com o objetivo de garantir precisão absoluta. Em vez disso, optou por permitir erros que não afetam nossa fé e prática. E insensato dizer a Deus que tipo de Bíblia Ele deveria ter produzido para que os livros sagrados fossem inspirados e inerrantes.

Não temos o direito de definir "inspiração" de acordo com nossos critérios subjetivos de inerrância, a fim de enfrentar o desafio dos estudos críticos da Bíblia. Ao contrário, precisamos simplesmente olhar e ver o tipo de Bíblia que foi produzido sob a supervisão (inspiração) do Espírito Santo. Quem olha para a Bíblia com a mente aberta concorda realmente "'"''* com a alegação de que ela é inspirada e autorizada para determinar nossas crenças e práticas, mas não para validar a pretensão de que ela é isenta de erros.


Eram os manuscritos originais isentos de erros? Defensores da inerrância absoluta alegam que somente os manuscritos originais eram inerrantes, mas não a Bíblia atual. Isso significa que as discrepâncias e erros existentes seriam supostamente resultado da transmissão do texto bíblico. Os exemplares originais dos diversos livros da Bíblia estariam isentos de erros porque Deus inspirou os escritores bíblicos a escreverem com exatidão. O apelo aos manuscritos originais para justificar os erros existentes na Bíblia deixa uma porta de escape permanentemente aberta para os merrantistas. Não importa quão patente seja um erro, eles podem sempre se desviar da questão alegando que se trata de um erro de transmissão, não presente na versão original. Esse argumento, como ressalta Stephen Davis,"parece intelectualmente desonesto, principalmente quando não existem indícios textuais de que o erro suposto se deve de fato a um problema de transmissão".


O estudo científico das leituras variantes dos manuscritos bíblicos avançou tanto que os pesquisadores de hoje podem estabelecer com surpreendente exatidào a leitura dos manuscritos originais. Além do mais, esses problemas são poucos em comparação ao conteúdo de toda a Bíblia, e não afetam os seus ensinos.


Um único erro torna suspeita toda a Bíblia?

Alguns inerrantistas afirmam que, a menos que a Bíblia esteja isenta de erros em cada uma de suas declarações, a fidedignidade de todos os ensinos se torna suspeita. Nas palavras de Dan Fuller:"Se somente uma de suas declarações [da Bíblia] estiver errada, a verdade de qualquer outra declaração se torna questionável."


O problema com esse argumento é que ele condiciona a fidedignidade dos ensinos bíblicos à exatidão absoluta em detalhes históricos, geográficos e científicos. No entanto, em parte alguma os escritores bíblicos alegam que todas as suas declarações são infalíveis. A razão disso é que,.para eles, os acontecimentos ou as mensagens principais 35" eram mais importantes do que seus detalhes circunstanciais.


Um exemplo será suficiente para ilustrar esse ponto. Marcos nos diz que, ao enviar os discípulos em uma missão evangelísticajesus lhes permitiu levar um bordão:"Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, exceto um bordão; nem pão, nem alforje, nem dinheiro" (Mc 6:8).


No entanto, Mateus e Lucas relatam Jesus proibindo especificamente o uso de bordão: "Não vos provêreis de ouro, nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos, nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão" (Mt 10:9,10; itálico acrescentado). "Nada leveis para o caminho: nem bordão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro" (Lc 9:3; itálico acrescentado).


Fica evidente que os dois relatos são contraditórios e que pelo menos um dos Evangelhos está equivocado. Mas essa incoerência não destrói a confiança no evento relatado, a saber, Cristo comissionou os discípulos. Ao que parece, para os autores dos Evangelhos, os eventos eram mais importantes do que os detalhes.


A credibilidade das grandes doutrinas da Bíblia não depende da precisão de detalhes circunstanciais. E infundado o temor de que, se a inerrância cair por terra, as grandes doutrinas da Bíblia também cairão. Para ser franco, muitos cristãos que não avalizam a teoria da inerrância absoluta crêem nessas doutrinas.


A compreensão católica sobre a natureza da Bíblia

Documentos oficiais católicos não discutem a questão da exatidão do texto bíblico. Para a Igreja Católica, a exatidão da Bíblia é um fato indiscutível, fundamentado em sua crença, claramente formulada no novo Catecismo da Igreja Católica, de que "a Sagrada Escritura é o discurso de Deus enquanto redigido sob a moção do Espírito Santo".


Isto soa como unia "Teoria do Ditado", já que o próprio catecismo define a Bíblia como o discurso de Deus registrado "sob a moção do Espírito Santo". O problema com o ensino católico é duplo. Por um lado, tenta fazer da Bíblia um livro estritamente divino que deve ser reverenciado como o corpo de Cristo. Por outro lado, enaltece a Tradição, isto é, os ensinos tradicionais da Igreja Católica, ao mesmo nível da natureza divina da Bíblia


 O Catecismo explica que a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus escrita, enquanto a Tradição é a transmissão viva da Palavra de Deus confiada à igreja. Em outras palavras, Deus Se revela através de duas agências: a Bíblia e os ensinamentos tradicionais da Igreja Católica.


Citando o documento Dei Verbum ("Palavra de Deus"), do Concílio Vaticano II, assim reza o Catecismo: "Portanto, a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas entre si." Diz mais: "A Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, [...] donde resulta, assim, que a igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência.'


Essa declaração oficial expressa com surpreendente clareza o ensino católico de que Scnptnra et Tradition (ou seja, Escritura e Tradição) são os dois canais da revelação divina e constituem a autoridade normativa para a definição de crenças e práticas católicas.


Avaliação da visão católica

Ao fazer de seus ensinos tradicionais a "transmissão viva" da Palavra de Deus, "realizada pelo Espírito Santo", a Igreja Católica reduziu em grande parte e substituiu por fim a autoridade da Bíblia. O cardeal James Gibbons reconhece esse fato quando declara: "As Escrituras sozinhas não contêm todas as verdades nas quais um cristão deve crer, tampouco prescreve de maneira expressa todos os deveres que ele está obrigado a praticar."


Num tom semelhante, John L. McKenzie, professor da Universidade Notre Dame, afirma: "A Bíblia é a Palavra de Deus, mas foi a igreja que proferiu a palavra. E a igreja que dá a Bíblia ao crente."28 Ao exaltar sua autoridade de ensinar, conhecida como Magistério, acima da autoridade da Bíblia, a Igreja Católica conseguiu promulgar, ao longo dos séculos, inúmeros dogmas que violam flagrantemente os inequívocos ensinos da Bíblia. Analisaremos nos próximos capítulos alguns ensinamentos católicos que são populares e antibíblicos: imortalidade 37r: da alma, santidade do domingo, primazia papal, batismo infantil, veneração e intercessão de Maria e dos santos, penitência, indulgências, purgatório e tormento sem fim no inferno.


Precisa a Escritura ser suplementada pela tradição?

Constitui rematada arrogância uma igreja alegar que seus ensinos são a "transmissão viva" da Palavra de Deus, a qual conduz os fiéis à "verdade plena", apenas parcialmente contida nas Escrituras. Mas é isso o que a Igreja Católica afirma: "A comunicação que o Pai fez de Si mesmo por seu Verbo no Espírito Santo permanece presente e atuante na igreja." Através do Espírito Santo, "a voz viva do Evangelho ressoa na igreja e, através dela no mundo, leva os crentes à verdade plena'.


A noção de que a Bíblia contém apenas parcialmente as verdaUes reveladas, as quais devem ser suplementadas pelo ensino da Igreja Católica, nega a toda-suficiência das Escrituras. Paulo declara que "toda a fc.scnr.ura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra" (2Tm 3:16, 17). Note que a Bíblia contém todos os ensinamentos necessários para um crente ser "perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra". Não há necessidade da tradição para completar a Escritura.


Jesus censurou energicamente a forma enganosa pela qual a tradição pode minar a autoridade das Escrituras. "Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para guardardes a vossa própria tradição, [...] invalidando a palavra de Deus pela vossa própria tradição" (Mc 7:9, 13).


A fim de legitimar a validade daquilo que ensinavam, os escritores do Novo Testamento apelavam constantemente para as Escrituras, e não para a tradição (Mt 21:42;Jo 2:22; ICo 15:3,4; IPe 1:10-12; 2Pe 1:17-19). Paulo louvou os bereanos por comparar seus ensinos com a Escritura, e não com a tradição."[Os bereanos] receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim" (At 17:11).


Não resta dúvida de que a revelação divina contida nas Escrituras foi e continua sendo a autoridade final para definir as crenças e práticas cristãs. Qualquer tentativa de substituir a autoridade da Bíblia pela autoridade do magistério de qualquer igreja representa, como disse Jesus, uma maneira "jeitosa" de rejeitar o mandamento de Deus para guardar a sua própria tradição, invalidando assim a Palavra de Deus (Mc 7:9,13).



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